O Transcendentalismo no cinema de Terrence Malick

Define-se Transcendentalismo como um sistema filosófico que confia na racionalidade enquanto elemento determinante, de carácter místico e panteísta, unifica Deus, a Natureza e o Homem, sendo que a intuição é a principal via para o conhecimento. Surgiu nos Estado Unidos da América no século XIX, tendo como principal fundador o filósofo Ralph Waldo Emerson. Segundo a filosofia de Emerson, o material e o espírito não se encontram em campos opostos, mas refletem uma unidade crítica de experiência, para Emerson tudo existe num curso de mudança e de constante metamorfose, a sua filosofia destaca-se pelo equilíbrio dos opostos, poder e forma, identidade e variedade, intelecto e destino. A independência, o pensamento, a introspecção são elementos chave na visão de Emerson, assim como a forte relação do homem com a natureza.

Se pensarmos no cinema de Terrence Malick, encontramos traços que refletem os ideais defendidos pela filosofia de Emerson, quer a nível temático como estético. A forte relação do homem com a natureza é um dos temas visíveis em inúmeros filmes do realizador, a natureza que assume o protagonismo. Bill Fech afirma em «The Soul Announces Itself: Terrence Malick’s Emersonian Cinema» que o cinema de Malick se define em três aspetos significativos – íntimo, união e ação. O íntimo representa o pensamento, percepção e intuição, a reação emocional e a experiência como forma de identidade; a união, o mundo peça por peça; a ação, as obrigações morais, as escolhas estão no centro da experiência que exigem uma resposta ética. 

“Primeiro vem a consciência, depois o conhecimento da condição humana, por fim a ação num mundo baseado nesse mesmo conhecimento, sem o qual nada de valor poderá ser alcançado”

Ralph Waldo Emerson

É através de toda esta influência transcendentalista que Terrence Malick define a sua estética cinematográfica. Ao nível da cinematografia, Malick evita a câmara estática, e capta a natureza com sentido místico, observamos planos sequência das personagens a vaguearem pelo espaço, sequências da natureza, da vida e da evolução. Através da imagem, Malick cria uma cinematografia poética que nos dá as ferramentas para a intriga de cada filme. O som une-se com a imagem através da ocultação de certos elementos sonoros e a exaltação de  outros. A narração nos seus filmes vai e vem como um fluxo de pensamento, por vezes Malick sobrepõe a narração de diferentes personagens, nem sempre conectada com a informação visual, e expõe as questões pessoais de cada personagem, os seu pensamentos mais profundos, arrependimentos, e pouco a pouco o espectador encontra-se numa envolvência sem retorno ao íntimo de cada personagem. 

«The Thin Red Line» (1998) inicia uma fase de Malick mais focada no transcendentalismo, o filme inicia-se com uma forte sequência da natureza que conta com inúmeros planos de árvores que remetem para a intemporalidade. Observamos soldados americanos numa relação afetuosa com uma tribo e com uma cultura desconhecida à realidade americana, como se por momentos fosse impensável ou imprevisível a história de guerra que se segue. Observamos cenas de violência fortíssimas que expõem o que de mais irracional ocorre no percurso da humanidade; mas o que é mais notável nesta obra de Malick não são as cenas de violência extrema nem o contexto histórico da batalha de Guadalcanal mas sim o protagonismo da natureza e do pensamento humano, aos poucos nos apercebemos da influência da natureza no espírito de Witt, a maneira como por vezes, ele esquece que a guerra existe para conseguir alcançar a harmonia com a natureza, para conquistar o bem estar interior, e esse sim é o verdadeiro drama, a verdadeira intriga do filme, não é a batalha de Guadalcanal, essa existe em pano de fundo, face ao conflito interior de cada personagem.

Os dois filmes que se seguem na filmografia do realizador, «The New World» (2005) e «The Tree of Life» (2011) são, na minha opinião, os filmes de Malick que mais se aproximam dos ideais filosóficos de Emerson, sendo que remetem para os ensaios «Nature» e «The Over Soul», nomeadamente a relação Homem-Natureza, e os três pontos já referidos, Íntimo-União-Ação.

No quarto filme de Malick «The New World», a Natureza assume-se como uma personagem principal do filme, não só ao nível da cinematografia, repleta de imagens das paisagens nuas de Virgínia, das árvores, do rio, dos campos, assim como o som da água, do vento, dos pássaros, mas também ao nível narrativo. É através da relação Homem-Natureza, que Malick expõe as lutas interiores de cada personagem num mundo longe de ser perfeito. Assistimos ao ato do colonialismo, vejamos que durante o primeiro contacto entre o povo nativo americano e os colonizadores ingleses, Malick opta por uma banda sonora de Wagner e não por uma ação de violência, mas sim de observação; os nativos americanos observam os colonizadores com a mesma surpresa e estranheza que os colonizadores o fazem. Inicialmente, e até parte do filme, acreditamos que ambos os povos podem coabitar pacificamente num espaço de harmonia com o natural mas cedo notamos os contrastes. Basta observarmos o comportamento dos nativos, o espaço e a comunidade onde vivem, a maneira como andam pela floresta, como se banham no rio, como comunicam, a maneira como não lutam por fugir à natureza mas sim por viver como ela, a maneira como encontram um termo de equilíbrio e harmonia com a mesma. Os colonizadores fazem o oposto, andam de postura firme, cortam árvores e constroem fortalezas onde se isolam, olham para a Natureza não como vida mas apenas como meio para adquirirem o  materialismo que procuram. A relação harmoniosa entre ambos rapidamente se transforma em cenas de violência sangrentas, apenas justificadas por uma ambição materialista sem valor.

A narrativa principal do filme é a relação amorosa entre Smith e Pocahontas. Inicialmente, Smith, condenado à morte, é lhe dada uma nova oportunidade e encarregue o trabalho de comunicar com a tribo mais rica da área. Pocahontas representa a perfeita relação Homem-Natureza, desde o início do filme que procura pela natureza, que a chama, que deseja a sua harmonia. Esta personagem remete inteiramente ao ensaio «Nature» de Emerson. Procura o bem estar e a bondade, que se revelam na cena em que Pocahontas oferece mantimentos aos colonizadores no inverno. O rumo desta personagem torna-se um pouco contraditório após receber a trágica notícia da morte de Smith, Pocahontas cede ao modo de vida dos colonizadores, acaba por se casar e construir família com John Rolfe, com quem tem uma vida mais materialista e longe dos costumes em que foi criada e é vista como uma princesa na sociedade Londrina do século XVII, mas o que se torna mais notável e cativante nesta personagem é assistirmos ao seu reencontro pacifico com Smith, ao seu amor pelo marido e filho e acima de tudo, mesmo na fase final da sua vida, Pocohantas mantém harmonia com a Natureza e aceita a morte como elemento natural da vida. Por fim, encontra o que desde o início do filme procura, o rosto, a forma e a presença do natural.

«The Tree of Life», filme vencedor da Palma de Ouro na 64ª edição do Festival de Cannes, remete para os ensaios «Compensation» e «Experience» de Emerson e o «Livro de Jó» do Antigo Testamento. No início do filme observamos uma chama laranja, que poderá significar a alma, o espírito, o início do universo ou a representação física do eterno. Malick expõe que o universo é composto por duas forças – Natureza e Graça. A Natureza enquanto elemento forte e violento, a Graça como elemento bondoso e paciente, e são nestes dois pólos opostos que o universo se sustenta. Na narrativa, é evidente que o pai, Mr O’brien, representa a força e a violência da Natureza e a mãe, Mrs O’Brien, a bondade e a paciência da Graça. O filme apresenta a maneira como a morte e a vida, assim como toda a experiência e ação humana, moldam o pensamento e o carácter de cada um.

A narração do filme é dividida em diferentes timelines, no ano de 2010, Jack, filho mais velho dos O’brien, é um arquiteto num estado de melancolia e intriga pessoal. Nos anos sessenta, Mr e Mrs O’Brien recebem a noticia da morte do seu filho, R.L. O’Brien. R.L. pode ser visto neste filme como o mártir do bem e do transcendentalismo, tal como o representam Pocahontas e Witt nos seus respectivos filmes. Na década de cinquenta, observamos a infância de Jack e dos seus irmãos, e a sua relação com os pais. A relação de Jack com o pai vai-se tornando mais tensa ao longo do filme, e por consequência das atitudes violentas de Mr O’Brien, pede a Deus que o mate. Tanto ele como o irmão começam por tomar ações de baixa moralidade. Jack comete atos de vandalismo e aquando a morte de um vizinho questiona a existência divina, sentido-se dividido entre o rumo da Graça e da Natureza.

Através da narração, somos incluídos nos pensamento da Mrs O’brien e Jack, acedemos ao seu conflito pessoal, às suas reações emocionais. Na sequência da criação e evolução do universo, e mais tarde da Terra, assistimos à ordem natural do cosmos, da vida e do homem, e através desta sequência, Malick revela o ideal de que todos nós, seres e cosmos, partilhamos a mesma origem de existência. Emerson defende em «Compensation», que o universo é representado por cada partícula que o constitui e cada elemento da natureza contém todo o poder da mesma. Na sequência final, sequência intitulada ‘Eternidade’, Malick apresenta o reencontro das personagens, através de uma porta para o deserto, Jack encontra a sua família e finalmente aceita a morte, alcançando assim o transcendentalismo, estando aqui presentes o íntimo, a união e a ação.

15 de Dezembro de 2021

Originally published in Cinema7Arte